Surge uma novidade. E logo quando ela, a “inovação” no jargão corporativo, associada às tecnologias digitais e inteligência artificial (I.A) vem à tona, percebe-se o padrão: a corrida de profissionais ligados à educação que correm para apropriar-se delas e, munidos deste novo “capital tecnológico”, gravar lives, atrair convidados, produzir cursos de como utilizar e beneficiar-se das “novas ferramentas” em favor dos processos pedagógicos. E isso é tudo. Está feita a lição de casa. É isso o que espera o mercado.
Quanto às novidades, elas se impõem contra recentes paradigmas que imediata e ironicamente se tornam obsoletos. Sua vida é curta. Mal se tornaram criação e já se acumulam no vale da morte que compõem o lixo tecnológico.
Entretanto, embora o público menos vulnerável intelectualmente espere um debate mais ventilado sobre o potencial de risco que cada novidade traz em face de assuntos sensíveis, como a manutenção da democracia, o mundo do trabalho e a própria continuidade da vida, o que encontra é um esmagador volume de conteúdo que, ao fim e ao cabo, ou termina por relativizar os riscos, atribuindo total responsabilidade ao usuário, ou termina por prestar-lhe uma homenagem, ressaltando suas características intrínsecas em favor dos processos educacionais diversos. A “crítica”, isto é, o sentimento de espanto sobre a novidade – sentimento que deveria orientar o debate, tal como o monolito encontrado pela representação de nossos ancestrais em “2001: Uma Odisséia no Espaço”, de Stanley Kubrick (1968) – é deixada de lado aprioristicamente; um sinal nítido do sentimento positivo que é dispensado às tecnologias em razão do mito fetichista que alimenta a sua chama a cada novidade em que é lançada de tempos em tempos.
Mais recentemente, o mito fetichista das tecnologias digitais e I.A tem excitado nossas mentes diante do ChatGPT e das imagens produzidas pela Inteligência Artificial, como as que correram na última semana, mostrando um Donald Trump lutando com a polícia durante sua prisão ou o estiloso casaco vestindo o Papa Francisco. Estas são imagens incipientes do “novo paradigma” que está em curso. O modo com que tais imagens correram o mundo leva a crer que são parte constitutiva de um experimento laboratorial global, cujos efeitos devem produzir a real dimensão do seu potencial na guerra híbrida como novo paradigma geopolítico.
Neste sentido, o que se percebe é que, sob a lógica subcutânea das milhares de mentalidades que impulsionam as “inovações”, ancora-se apenas a noção de que tais dispositivos são “ferramentas”, esquecendo-se que também podem ser “armas”. É por meio do uso desenfreado e desregulado das tecnologias que o Estado de Direito e as democracias perdem terreno a cada dia. A razão principal que, aliás, pressiona a revolução de paradigmas relativos às tecnologias digitais, de longe superior à de qualquer outra área do conhecimento humano, se deve não a processos internos da própria depuração dos paradigmas vigentes, mas ao capital astronômico que se destina ao seu desenvolvimento. A recente comparação do poder destrutivo da I.A ao das armas nucleares não é metáfora. Já se admite, embora timidamente (sem as conexões necessárias), o potencial destrutivo da I.A e os riscos que ela representa à própria continuidade da vida humana.
É preciso abandonar a postura de servidão com que nos habituamos diante do smartphone. Ferramentas são utensílios para construir, para dar forma às coisas, para realizar utopias. Armas são feitas para destruir, para queimar a forma das coisas. A ideia de “ferramenta”, portanto, simboliza a própria humanidade. Está presente no mito bíblico por meio da figura do pai de Jesus, por meio da figura de alguém que é, não de modo gratuito, carpinteiro; e é novamente aludida na figura de Gepeto, como aquele que cria, por meio de serrote e martelo, o boneco de madeira a quem chamará de Pinóquio. A substância imaterial, a alma, é o dom das criações advindas do trabalho e do poder das ferramentas. É verdade que há uma simbiose entre ferramentas e armas: é a dialética entre criação e destruição, entre o impulso da vida e da morte. Em dado momento da história, ferramentas se convertem em armas, como foice e martelo; e símbolos da paz convertem-se em símbolos de morte e genocídio, como a suástica.
É preciso repetir o olhar: até nos objetos menos duráveis há algo vivo que grita como quem pede socorro.